Em pleno século 21, a humanidade continua tentando
conciliar fé e razão. Mas será que algum dia a ciência terá condições de provar
que foi mesmo Deus (ou alguma outra entidade superior) quem criou o Universo e
determinou os rumos da evolução?
por Texto Rodrigo Cavalcante
O zoólogo Richard Dawkins e o paleontólogo Simon
Conway Morris têm muito em comum: lecionam nas mais prestigiadas universidades
da Grã-Bretanha (Dawkins em Oxford e Morris em Cambridge) e compartilham
opiniões e crenças científicas quando o tema é a origem da vida. Para ambos, a
riqueza da biosfera na Terra é explicada mais do que satisfatoriamente pela
teoria da seleção natural, de Charles Darwin. Os dois também concordam que,
caso a história do nosso planeta pudesse ser reproduzida em outro lugar, a evolução
provavelmente seguiria um rumo bem parecido ao observado por aqui, inclusive
com o aparecimento de animais de sangue quente, como nós. Num encontro
realizado na Universidade de Cambridge em outubro, porém, eles protagonizaram
um novo round de um debate que divide a humanidade desde que o mundo é mundo:
Deus existe? Morris, cristão convicto, afirmou na palestra promovida pela
Fundação John Templeton (cuja missão é “explorar as fronteiras entre teologia e
ciência”) que a “misteriosa habilidade” da natureza para convergir em criaturas
morais e adoráveis como os seres humanos é uma prova de que o processo
evolutivo é obra de Deus. Já o agnóstico Dawkins disse que o poder criativo da
evolução reforçou sua convicção de que vivemos num mundo puramente material. O
debate entre Dawkins e Morris, como já foi dito, não é novo, longe disso. De um
lado, é óbvio que sempre haverá bilhões de pessoas que acreditam em Deus. Ao
mesmo tempo, dificilmente vamos viver para comprovar Sua existência (ou
inexistência). Entender alguns laços que unem ciência e religião e mostrar como
essa relação vem mudando ao longo dos tempos é o tema desta reportagem.
Durante muitos séculos, Deus (e só Ele) foi
apresentado como o principal responsável pelo sucesso da aventura humana sobre
o planeta – nas artes, nos livros, nas escolas e nas igrejas. Até que a ciência
começou a mostrar que isso não era necessariamente verdade. Na década de 1860,
a teoria da seleção natural e da evolução das espécies, de Charles Darwin,
lançou as primeiras dúvidas consistentes acerca da influência divina sobre a
ordem da vida na Terra. Com o passar dos anos, mais e mais pesquisadores
passaram a defender que o destino da humanidade era abandonar gradativamente a
fé e a religião em nome da crença em explicações “objetivas” para os fenômenos
naturais. “No fim do século 19, os cientistas acreditavam estar muito próximos
de uma descricão completa e definitiva do Universo”, escreveu o físico
britânico Stephen Hawking.
No século 20, Nietzsche, Marx, Freud, Sartre e
outros chegaram a apostar na “morte” de Deus e no início de uma “era da razão”.
Não é preciso ser um especialista para saber que esse triunfo não se
concretizou. Ao contrário. O que se observa hoje é uma revalorização da fé,
inclusive entre os cientistas, como Simon Morris. “Ao longo da história, a
relação do homem com o sagrado tem se mostrado um traço extremamente
persistente”, diz Oswaldo Giacoia Júnior, professor de história da filosofia
moderna e contemporânea da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. “Nos
regimes socialistas em que a religião era proibida as pessoas substituíam a fé
por uma ideologia.”
Cabe, então, à ciência provar a existência de Deus?
O paleontólogo americano Stephen Jay Gould acredita que nenhuma teoria (nem
mesmo a da evolução) pode ser vista como uma ameaça às crenças religiosas,
“porque essas duas grandes ferramentas da compreensão humana trabalham de forma
complementar, e não oposta: a ciência para explicar os fenômenos naturais e a
religião como pilar dos valores éticos e da busca por um sentido espiritual
para a vida”. É por pensar assim que ele sempre se colocou do lado dos
pesquisadores que são contra misturar ciência com religião (leia mais no quadro
da página ao lado).
Quem é Deus?
O cabelo e a barba grisalhos denunciam a idade, mas
o corpo é forte e musculoso. Os traços da face transmitem a autoridade de quem
não hesitará em agir sobre o mundo caso seja necessário. Para bilhões de
ocidentais, a pintura de Michelangelo no teto da capela Sistina, no Vaticano, é
a síntese perfeita de Iavé, o Deus bíblico, aquele que “criou tudo em 6 dias”.
Como diz o escritor americano e ex-jesuíta Jack Miles, autor de Deus, uma
Biografia, mesmo quem não acredita continua moldando seu caráter por influência
dessa imagem. Miles faz uma análise surpreendente da Bíblia, ao tratar de Deus
como um personagem literário. O resultado é que, como protagonista do livro
mais influente da história, Iavé revela uma personalidade que oscila bastante
em relação à sua criação – como no momento em que ordena o dilúvio, para tentar
“consertar” tudo.
Mas esse Deus é apenas uma entre inúmeras
concepções de divindades. Não há sequer consenso em torno do número de deuses.
Para mais de 750 milhões de hindus, existem centenas deles, como Brahma, Shiva
e Krishna, para ficar nos mais conhecidos. Em rituais xamânicos de origem
indígena, os deuses incorporam até em plantas e animais. E para mais de 350
milhões de seguidores do budismo, não há sequer uma divindade a cultuar –
apenas Buda, um homem que atingiu a iluminação e virou guia espiritual. Como,
então, a ciência pode encontrar Deus?
Apesar disso, os estudiosos sabem que há algo em
comum entre essas crenças. Sem exceção, elas acreditam que há uma ordem, uma
espécie de propósito (ou, se você preferir, sentido) no Universo. Nenhuma
religião trabalha com o pressuposto de que o acaso e a indiferença regem as
nossas vidas. Curiosamente, foi a busca por essa ordem que acabou impulsionando
o avanço da própria ciência.
Da geometria ao acaso
No século 18, a maioria dos filósofos e cientistas
acreditava piamente que a humanidade estava prestes a decifrar (integral e
definitivamente) a ordem do Cosmos. Na época, havia motivos de sobra para
tamanho otimismo: fazia mais de 100 anos que Isaac Newton publicara Princípios
Matemáticos da Filosofia Natural, considerada até hoje a obra mais importante
da história da física. Nela, Newton não apenas descreveu como os corpos se
deslocam no espaço e no tempo, mas desenvolveu a complexa matemática necessária
para analisar esses movimentos. Segundo essa teoria, as leis do Universo eram
estáveis e previsíveis, como se tivessem sido projetadas por um craque da
geometria. Em 1794, o escritor, poeta e artista plástico inglês William Blake
resumiu essa idéia ao desenhar Deus (um velho barbudo, como o de Michelangelo)
criando o mundo com um compasso na mão. “A metáfora do Deus geômetra deriva da
velha idéia platônica de um Universo dualista, em que há a necessidade de
existir uma ordem, mas continua influenciando a ciência até hoje”, diz o
brasileiro Marcelo Gleiser, autor de O Fim da Terra e do Céu e professor de
física e astronomia da Faculdade de Dartmouth, nos EUA.
A imagem de Deus, nesse sentido, era perfeitamente
compatível com a visão científica do mundo da época. Os problemas só surgiam
quando alguém tentava juntar as mais recentes descobertas da ciência com a
história bíblica da Criação. Afinal, o estudo das camadas geológicas que
formaram a Terra já provava que nosso planeta tinha milhões de anos – e não 5
mil, de acordo com os cálculos de Santo Agostinho. Mas bastava esquecer
“detalhes” como esse para que todos fossem dormir felizes, conscientes de que o
Universo tinha sido mesmo obra do Criador. Até que...
Se havia uma ordem no Universo, nada mais natural
que ela comandasse todas as forças da natureza. E o homem, é claro, era visto
como o exemplo máximo da perfeição da vida sobre a Terra. Mas Charles Darwin
apresentou sua teoria sobre a seleção natural das espécies e colocou em xeque a
idéia de que Deus era o responsável por tudo isso que está aí. Vale lembrar que
Darwin nunca disse que o homem descendia dos macacos – apenas que homens e
macacos eram parentes evolutivos com um ancestral comum (os paleantropólogos
estimam, hoje, que esse “tataravô” viveu em algum momento entre 4 milhões e 6
milhões de anos atrás). Ainda assim, muita gente não aceitou a idéia de que as
espécies vivas, incluindo a nossa, possam ter se desenvolvido graças apenas à
seleção natural, tendo evoluído quase por acaso em meio a tantas outras
espécies. O fato é que o estudo da história da vida em nosso planeta comprovou
que, durante milhões de anos, outras espécies reinaram por aqui sem que
houvesse nenhuma necessidade da existência dos homens. Como bem resume o
cientista americano Carl Sagan no seriado de televisão Cosmos, recentemente
relançado em DVD pela super, se a história do Universo fosse condensada em
apenas um ano, o aparecimento da espécie humana teria ocorrido nos últimos
instantes do dia 31 de dezembro.
E o avanço da física deixou claro que, se o
Universo fosse um relógio, nem sequer o tempo marcado por ele seria preciso. Em
1905, Albert Einstein publicou seu estudo da Teoria da Relatividade que,
resumidamente, pôs fim à idéia de tempo absoluto. A estabilidade perfeita das
leis de Newton começou a se despedaçar para sempre. Logo em seguida, o estudo
da mecânica quântica revelou que não é possível sequer prever a posição exata
de partículas subatômicas, obrigando os cientistas a se contentar em trabalhar
com probabilidades. Apesar de ter ajudado a destruir a velha noção de ordem no
espaço e no tempo, Einstein acreditava cegamente que a natureza funcionava (ou
deveria funcionar) segundo regras bem definidas – e não de maneira aleatória,
como num grande jogo de azar. Numa carta para o físico Max Born, Einstein
escreveu: “Você crê em um Deus que joga dados e eu, na lei e na ordem
absolutas.” Se para um cientista como Albert Einstein não era fácil lidar com o
acaso e o caos, imagine para os que acreditam na religião.
Do ponto de vista da física pura, porém, é
importante ressaltar que todo esse papo de criação do Universo tem pouca (ou
nenhuma) importância. Não fosse pela descoberta da teoria do big-bang (segundo
a qual ele surgiu após uma grande explosão), nem sequer haveria a necessidade
de provar que houve uma “hora zero”, afinal o tempo e o espaço são mesmo
relativos, não é mesmo? Curiosamente, o big-bang passou a ser considerado por
muitos fiéis a “evidência científica” de que a Bíblia está certa ao descrever o
“início de tudo”. Talvez para tentar explicar a incompatibilidade existente
entre a física das partículas subatômicas e a Teoria da Relatividade, muitos
pesquisadores têm discutido atualmente a chamada Teoria das Supercordas, que
propõe uma explicação unificada capaz de preencher essas lacunas. “De qualquer
maneira, essa tese é mais um desejo de encontrar uma ordem do que algo validado
cientificamente”, diz o físico Marcelo Gleiser.
E se a ciência conseguisse achar essa tal ordem no
Universo, será que isso seria a prova da existência de Deus? Ou será que a
busca pelo divino não passa de uma necessidade inventada pelo homem para
colocar um sentido em tudo (afinal, até onde se sabe, somos os únicos animais
que tentam entender por que existe a morte)? Nas últimas décadas, o que se tem
visto é um acirramento das diferenças entre aqueles que acreditam que a
complexidade da vida só pode ser explicada por uma inteligência superior e
aqueles que defendem que a inclinação para acreditar em Deus é apenas um traço
biológico da nossa espécie, ou seja, somos programados para ter fé. É o que
veremos nas próximas páginas.
Deus vai à escola
Dover, no estado americano da Pensilvânia, é uma
daquelas cidades tão pequenas que mal dá para avistar seu núcleo urbano da
altura média de vôo de um jato comercial. A pacata vida de seus 1814 habitantes,
a maioria descendente de alemães, quase nunca foi notícia nos grandes jornais
dos EUA. Tudo mudou no dia 18 de outubro deste ano, quando teve início o
julgamento sobre a grade curricular de uma escola pública local que decidiu
dedicar parte das aulas de biologia ao estudo de uma teoria conhecida em inglês
como intelligent design (algo como projeto ou desenho inteligente, numa
tradução livre para o português). Seu principal cartão de visita é o fato de se
contrapor à tese de Darwin sobre a seleção natural e a evolução das espécies.
Como a Constituição americana garante a total separação entre a Igreja e o
Estado, alguns pais acharam que a direção do colégio estava muito perto de
misturar ciência e religião, apelaram para a intervenção da Justiça e o debate
pegou fogo no país.
Nas salas de aula em questão, as crianças e jovens
aprendem que várias tarefas altamente especializadas e complexas do organismo
humano – como a visão, o transporte celular e a coagulação, entre outras – só
podem ser explicadas pela ação de uma força maior ou, em outras palavras, pela
intervenção de um ser superior, capaz de bolar o tal desenho inteligente do
nosso corpo e da nossa mente. Para a maioria dos biólogos do planeta, contudo,
essa tal inteligência não passa de um novo nome para um velho conceito: o
criacionismo bíblico, segundo o qual estamos na Terra apenas porque saímos da
prancheta (ou da imaginação) divina para nos reproduzir “à Sua imagem e
semelhança”.
Se, como já foi dito no início do texto, há muitos
cientistas que não vêem motivos para buscar as impressões digitais de Deus na
história do Universo, outros tantos acreditam que as teses de Darwin têm falhas
e, como tal, precisam ser ensinadas nas escolas “em toda sua amplitude”, ou
seja, alertando os alunos para o fato de que há controvérsias a respeito das
descobertas que o jovem naturalista inglês fez a bordo do navio Beagle. Os
defensores do desenho inteligente juram que não têm nenhuma ligação com os
criacionistas do século 19, que difundiam uma interpretação literal do Gênese
para conter a rápida e eficaz disseminação das teorias darwinistas – apesar das
críticas da maior parte dos colegas da comunidade científica.
“Uma coisa é você tentar justificar uma fé usando
argumentos científicos, outra é descobrir uma teoria científica que pode ser
compatível com a fé”, disse à Super o bioquímico Michael J. Behe, pouco depois
de depor no julgamento em defesa da “nova tese”. Professor da Universidade de
Lehigh, na Pensilvânia, e autor do livro A Caixa-Preta de Darwin, ele diz que,
se toda formulação científica compatível com uma crença religiosa tivesse de
ser descartada automaticamente pelos pesquisadores, os astrônomos jamais
poderiam aceitar os estudos sobre o big-bang. “Estou apenas defendendo o
direito dos estudantes de terem acesso a outras idéias sobre a criação do
Universo”, afirmou Behe.
A discussão em torno do ensino de ciências –
inclusive com a interferência do Poder Judiciário – não é nenhuma novidade nos
EUA. No início dos anos 20, muitos estados americanos simplesmente proibiram os
alunos de ter aulas sobre as teorias evolutivas de Darwin. Em 1925, teve início
um julgamento que, num primeiro momento, levou à condenação de um professor do
ensino médio do Tennessee simplesmente porque ele acreditava que somos parentes
dos macacos (e dizia isso em classe). Após sucessivos recursos de ambos os
lados, o processo só terminou em 1968, quando a Suprema Corte decidiu que
qualquer iniciativa no sentido de definir o currículo escolar com base em
crenças religiosas era inconstitucional.
É por isso que tantos vêem o desenho inteligente
como uma espécie de cortina de fumaça para colocar Deus de volta nas salas de
aula? Será que, do ponto de vista científico, o desenho inteligente tem
consistência? “Por enquanto, não”, afirma Vera Volferini, professora de
genética e evolução da Unicamp. Segundo a bióloga, não existem ainda argumentos
científicos que sejam tranqüilamente aceitos pela maioria dos pesquisadores.
“Teorias como essa presumem que o ser humano é o resultado de um projeto perfeito,
o que não é verdade. É consenso entre os especialistas que o design humano,
apesar de eficiente, está longe de ser inatacável biologicamente. A próstata do
homem, para ficar em apenas um exemplo, não segue um desenho anatômico ideal”,
diz ela. E é justamente essa falha na concepção que provoca muitos problemas
que afetam boa parte dos machos da espécie. Além disso, por que não poderíamos
ter mais de 5 dedos em cada mão? Vera explica que, ao menos do ponto de vista
biológico, temos esse número de dedos não porque seria um problema ter um ou
dois a mais, mas porque fazemos parte de uma espécie cujo ancestral, há milhões
de anos, tinha (por acaso) 5 dedos.
No Brasil, a teoria criacionista já desembarcou
também – nos colégios públicos do Rio de Janeiro e, por enquanto apenas nas
aulas de religião (em 2002, um lei proposta pelo governador Anthony Garotinho
incluiu a disciplina “religião confessional” no currículo escolar). E a atual
governadora do estado, a presbiteriana Rosinha Matheus (mulher de Garotinho),
afirmou recentemente ao jornal O Globo que não acredita nas teses darwinianas.
Apesar de o assunto não ser tratado nas aulas de biologia por aqui, o tema vem
preocupando entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), que já se manifestou contra a disseminação do criacionismo nas escolas
fluminenses. “O problema não é ter ou não uma crença pessoal”, diz Marcelo
Menossi, professor de genética molecular da Unicamp. “O problema é tentar
justificar e espalhar essa crença usando falsos argumentos científicos.”
Genética da religião
Nos anos 60, a britânica Jane Goodall afirmou que
algumas espécies podem ter a religiosidade gravada nos próprios genes. A
pesquisadora ficou famosa ao estudar o comportamento de chimpanzés na Tanzânia.
Numa de suas numerosas observações, descobriu que os macacos agiam de maneira
nada usual diante de uma cachoeira, demonstrando o que ela batizou de senso
místico e de reverência. “Alguns permaneciam sentados numa rocha em frente à
queda d’água, como se estivessem encantados. Outros ficavam sob a queda d’água
por mais de 50 minutos, quando normalmente nem gostavam de se molhar.” Goodall
concluiu que esse comportamento é um traço de religiosidade primitiva. E nós?
Será que também nós humanos fomos “programados” para acreditar em Deus?
Para o biólogo Edward O. Wilson, um dos pioneiros
da sociobiologia (ciência que se dedica a compreender o comportamento humano
por meio da biologia), a predisposição para a religião é mesmo resultado da
evolução genética do cérebro. Segundo ele, nossa inclinação para acreditar num
ser superior pode ser resultado da submissão animal. Ele conta que entre
macacos rhesus o macho dominante caminha com a cauda e a cabeça erguidas,
enquanto os dominados mantêm a cabeça e a cauda baixas, em sinal de respeito ao
líder – em troca, eles têm proteção contra os inimigos e acesso a abrigo e
alimento. Segundo Wilson, a tendência de se submeter a um ser superior é
herança dessas ações. “O dilema humano é que evoluímos geneticamente para
acreditar em Deus, não para acreditar na biologia.”
Essa seria uma das razões pelas quais Deus é sempre
invocado quando precisamos lidar com temas etéreos (e muitas vezes polêmicos,
como a bondade, a solidariedade etc.). “Afinal, se Deus for apenas uma
constante física, é óbvio que ele não terá nada a dizer sobre ética, certo e
errado ou qualquer outra questão moral”, diz o britânico Richard Dawkins (leia
o quadro da página ao lado).
O radiologista Andrew Newberg e o psiquiatra Eugene
D’Aquili (que morreu há 5 anos) resolveram buscar diretamente no cérebro a
origem da experiência religiosa. Utilizando aparelhos de tomografia, eles
revelaram as áreas mais ativadas pela meditação em 8 budistas e em um grupo de
freiras franciscanas. A pesquisa, cujos resultados foram publicados no livro
Why God Won’t Go Away (“Por que Deus não Vai Embora”, sem tradução no Brasil),
mostrou que durante as orações havia uma diminuição da atividade no lobo
parietal superior, a área do cérebro responsável pela nossa orientação de tempo
e espaço, pela sensação de separação entre o corpo e o indivíduo e pela
delimitação entre o “eu” e os “outros”. Ou seja, ao meditar criamos um bloqueio
que provoca a sensação de unicidade típica do êxtase religioso.
Além disso, várias outras pesquisas comprovam que
ter fé, independentemente de acreditar em um ou mais deuses, faz bem para o
corpo e a mente, pois melhora as condições de saúde e aumenta a sensação de
felicidade. A ciência ainda não conseguiu explicar se Deus criou o nosso
cérebro com essa habilidade ou se foi a evolução que fez o cérebro criar esse
portal para Deus. Mas nesta nova era de espiritualidade talvez isso não seja
tão importante assim. O que conforta muita gente é acreditar que é possível
melhorar o mundo pela fé.
"A relação do homem com o sagrado tem se
mostrado um traço persistente."
Oswaldo Giacoia Júnior, professor de história da
filosofia moderna e contemporânea da Unicamp.
"A metáfora do deus geômetra deriva da velha
idéia platônica de um universo dualista, em que há a necessidade de existir uma
ordem superior, mas continua influenciando a ciência até hoje."
Marcelo Gleiser, professor de física e astronomia
da Faculdade de Dartmouth, nos EUA.
"Uma coisa é você tentar justificar uma fé
usando argumentos científicos, outra é você descobrir uma teoria científica que
pode ser compatível com a fé."
Michael J. Behe, bioquímico e um dos principais
defensores da tese do “desenho inteligente”.
"Se Deus for só uma constante física, é óbvio
que ele não terá nada a dizer sobre o que é certo ou errado em questões
morais."
Richard Dawkins, zoólogo e professor da
Universidade de Oxford, na Inglaterra.
A
indiferença do universo
Para muitos pesquisadores, o que distingue a
ciência de outras visões de mundo é exatamente sua recusa em aceitar cegamente
qualquer informação e sua determinação de submeter qualquer tese a testes
constantes até que novos dados possam confirmá-la ou refutá-la. Essa visão
baseia-se, entre outras coisas, na obra do filósofo vienense Karl Popper, que
morreu em 1994. Segundo Popper, a ciência só pode tratar de temas que resistam
ao que ele chamou de “critério de falseabilidade”. Resumidamente, o papel do
verdadeiro cientista é buscar, com persistência, erros em sua teoria – em vez
de tentar achar dados que provem sua correção. Quanto mais genérica e exposta a
falhas (ou seja, quanto mais “falseável”), menos provável ela é. Por outro
lado, quanto mais resistente (menos falseável), maiores as chances de acerto,
pelo menos até o próximo teste. É por isso que um grande número de estudiosos
argumenta que não é papel da ciência provar a existência de Deus. “Não faz
sentido alguém afirmar que, ao descobrir um mistério do Universo, está ajudando
a decifrar a mente divina”, diz o zoólogo britânco Richard Dawkins. Apesar
disso, ele reconhece que é fascinante encantar-se diante dos mistérios da
natureza – e das limitações científicas para explicá-los. Esse sentimento foi
batizado pelo físico brasileiro Marcelo Gleiser de “misticismo racional”. Em
outras palavras, é uma espécie de declaração de amor pelos fenômenos naturais, que
se concretiza por meio da pesquisa científica. Segundo ele, há um paradoxo por
trás da incansável busca por uma ordem e um sentido no Cosmos. “Como o homem é
o único ser capaz de amar, tem uma imensa dificuldade em aceitar que o Universo
pode ser totalmente indiferente a ele”, afirma.
A ética num
mundo sem "ele"
“Se Deus não existe, tudo é permitido.” A frase,
que ficou célebre no livro Os Irmãos Karamazov, do russo Fiodor Dostoievski,
resume uma das questões mais cruciais do mundo moderno: sem uma referência
divina, passaríamos a viver numa espécie de vale-tudo moral? “Não
necessariamente”, diz o filósofo Oswaldo Giacoia Júnior, da Unicamp. “A busca
de um código de valores sempre foi uma preocupação central da filosofia, sem
necessidade de uma legitimação divina.” No século 18, por exemplo, os ideais de
igualdade e justiça social, aceitos hoje como uma preocupação ética, surgiram
de formulações dos filósofos iluministas – que acreditavam ser possível
defendê-los com base na razão, não na religião (na época, esse tema não era
nada popular no Vaticano). Em meados do século 20, o francês Jean Paul Sartre,
o pai do existencialismo – segundo o qual de nada adianta buscar um propósito
da existência para além da vida humana –, disse que a nossa própria condição de
seres que vivem em sociedade é suficiente para justificar a prática de valores
solidários. E ainda hoje filósofos como o vienense Peter Singer (um dos mais
ferrenhos defensores dos direitos dos animais) continuam defendendo uma série
de condutas éticas baseadas na razão, não na fé. Mas será que a adoção pura e
simples de uma ética sem Deus não pode nos levar a um racionalismo frio, capaz
de ofuscar valores menos palpáveis, como a bondade? “A fé não se traduziu
apenas em atos de paz e harmonia ao longo dos tempos”, lembra Giacoia. “Dos
grandes conflitos religiosos do passado ao moderno terrorismo fundamentalista,
já foram cometidas inúmeras atrocidades em nome da ética religiosa em todo o
mundo.”
Para
saber mais
Deus, uma Biografia - Jack Miles,
Companhia das Letras, 2002
Desvendando o Arco-Íris - Richard
Dawkins, Companhia das Letras, 2000
Consiliência - Edward O. Wilson,
Editora Campus, 1999
O Romance da Ciência - Carl Sagan,
Francisco Alves, 1982
Why God Won´t Go Away - Andrew Newberg e Eugene
D·Aquili, Ballantine Books, 2002
A Caixa-Preta de Darwin - Michael Behe,
Jorge Zahar Editor, 1997