Uma das questões chave da arte contemporânea, especificamente no campo das artes visuais, é: "o que é exatamente new media art”? Talvez seja extemporâneo ressuscitar a fadada pergunta, já que analistas e praticantes dessa forma de expressão vêm por décadas explicando o termo à exaustão, criando guarda-chuvas conceituais, topologias remodeladas e conceitos pessoais. Ao invés de começar com um conjunto de observações e tentar subordiná-las a uma lei ordenadora, os agentes que perambulam na fronteira da new media art preferiram gerar categorias não definidas (ou mal definidas), refugiando-se em recantos neutros e desviando-se de possíveis ataques. Enquanto isso, a crítica se especializa; ou se omite.

É possível, ao menos no Brasil, que o gueto da arte tecnológica (outra expressão imprecisa) tenha sido formado ainda nas décadas de 60 e 70, no momento em que alguns artistas contemporâneos passaram a aplicar novas mídias e tecnologias em suas expressões. Era a época da holografia e da arte computacional elaborada por meio de computadores de grande porte, suportes ainda mal compreendidos por cientistas, o que não dizer dos artistas? É sempre bom lembrar que a proposta de Art and Technology, exposição promovida pelo Los Angeles County Museum of Art em 1969, foi mal recebida por muitos dos artistas convidados, pois implicava em colaboração dos últimos com engenheiros de diversas indústrias. Com o passar dos anos, os objetos técnicos foram assimilados no dia-a-dia das pessoas (e dos artistas), e passou a não fazer mais sentido a new media art se refugiar num canto do sistema das artes.

Neste sentido, a classificação ganhou flexibilidade o suficiente não a ponto de criar escolas, mas interpretações mais plausíveis. Obviamente, o que é chamado de new media art é, na verdade, arte visual contemporânea, com um toque a mais. É arte visual contemporânea, mas com uma diferença que faz a diferença, expressão de Bateson que está de acordo com várias outras colocações propositadamente ambíguas que, somadas umas às outras, podem criar eventualmente lacunas não vazias, esperando por explicativas. De qualquer forma, há filões variados. E o que aparentemente mais se ajusta a essa realidade estética pode ser simplesmente cunhado de “arte cibernética”. Mas antes de tudo, levanta-se a questão: o que é mesmo "cibernética"?

Cibernética: mera curiosidade histórica?

A história da cibernética é conhecida, mas por pouco não caiu no ostracismo. O que começou como uma nova tecnologia para previsão de percursos de mísseis balísticos, depois migrando para a ciência cognitiva e invadindo a seara da conversação humana, acabou tornando-se uma mera curiosidade histórica décadas depois de sua reestréia. Não é do escopo do presente texto relembrar uma rocambolesca parte da história do desenvolvimento técnico-científico, mesmo porque a própria história da cibernética é ambígua e controversa. Para se ter uma idéia, seus detratores costumam condicioná-la ao capitalismo “vencedor”, principalmente sob o manto de suas derradeiras manifestações: o liberalismo e a sociedade da vigilância (1) .

É sabido que o matemático estadunidense Norbert Wiener, procurador da palavra “cibernética” no século 20, tinha conexões com o complexo militar dos EUA, e suas idéias sobre controle, ao serem tomadas ao pé da letra, podem conotar um tipo de manipulação. Porém o controle sobre o qual Wiener se referia estava relacionado mais ao desvendamento de como os sistemas – orgânicos e inorgânicos – se regulam ou se auto-regulam do que como se dá o governo puro e simples de um navio ou uma nação; o controle seria, portanto, uma espécie de revelação de relações (analógicas, digitais, etc.) para erradicar automatismos. Além disso, o exercício mental despendido por ele na previsão de trajetórias de mísseis, por contraditório que isso possa parecer, acabou por atenuar a linearidade do pensamento cientifico, e inspirou mais tarde o desenvolvimento de modelos estocásticos, com os quais é possível não predizer um futuro inevitável (bomba X, alvo Y), mas um campo de possibilidades.

É de considerável importância o advento de idéias ulteriores ao advento da cibernética de primeira ordem, principalmente as reverberadas pela tríade Heinz von Foerster, Gordon Pask e Gregory Bateson. É do primeiro a sugestão para que a cibernética se descolasse do campo da física e passasse a incluir aspectos subjetivos nos circuitos fechados por sistemas orgânicos e inorgânicos. Desta feita, o observador não seria mais um agente passivo e o mundo invadiria seus limites protoplasmáticos, assim como não mais ele se esconderia atrás da cortina de sua reflexão interior. Na nova configuração, os mundos exteriores e interiores invadem-se, remodelam-se e imprimem sentidos sobre regiões supostamente fora de seus domínios.

Gordon Pask, um ciberneticista britânico mas, antes de tudo, um verdadeiro polimata do século 20, é responsável por estudos de como são formados os conceitos e quais os princípios que regem e dão coerência às conversações. São de fundamental importância suas idéias sobre predominâncias na transmissão de subjetividade: aparentemente, ela ocorre na esfera física, na junção entre sistemas nervosos de indivíduos biomecânicos; mas, na proposta de Pask, a carne é apenas o fio condutor de uma forma predominante de viabilidade da espécie, a saber, as idéias, chamadas por ele de “sistemas psicológicos”. Vê-se que, além de encarnar um cientista maluco, que fazia explodir computadores eletroquímicos em seu laboratório, Gordon Pask também trafegava com maestria na zona cinzenta que separa o sujeito do objeto. Ou os une.

A tríade se completa com o antropólogo britânico Gregory Bateson, idealizador da “ecologia de mentes”. A transferência da mente humana (da subjetividade, enfim) para o campo da natureza rendeu-lhe acusações de funcionalismo (2), pois supostamente a incorporação da cultura pela natureza transformaria homens em autômatos, movidos cegamente por leis biológicas e de mercado. Mas se o meio ambiente tem mais variedade que os indivíduos que nele atuam, por que não reconhecer as limitações da mente humana e a primazia da Grande Mente, que vem evoluindo desde os primórdios do universo? Afinal, no cabo-de-guerra ecológico, a natureza sempre vence no momento derradeiro. Apesar de imanente, o sujeito proposto por Bateson busca outras unidades básicas de sobrevivência que não sejam as determinadas pelo individualismo. E, para usar o exemplo clássico de detração à cibernética, ao cortar um tronco de madeira, o sujeito não está apenas exercitando seus músculos, mas completando uma observação com o intuito de concluir uma tarefa. Em suma, não está impondo uma forma, mas dialogando com a matéria.

As propostas dos três pensadores da Nova Cibernética refutam de forma elegante a Objetividade Clássica e, de quebra, erradicam resquícios materialistas e positivistas, para os quais não seriam possíveis percepções não mediadas, sem a participação do observador. A inclusão do sujeito foi, antes de tudo, um ato radical, parte de uma revolução não concluída, posto que morta prematuramente por falta de verbas. Mesmo as piores intrigas contra a cibernética, principalmente as que a associam ao utilitarismo, foram refutadas nas salas do Biological Computer Laboratory, um laboratório de inovação gerenciado por Heinz von Foerster na Universidade de Illinois, durante as décadas de 50 e 60. O poder de fogo do BCL era tão potente (3) que a artilharia disparada por evangelistas da Inteligência Artificial, principalmente os patrocinados pelo MIT, acabou por virar mera diatribe.

Novas perspectivas

Sujeito e perspectiva: os dois blocos básicos da Nova Cibernética. Aparentemente, há consenso no que se refere ao primeiro elemento: interioridade, pessoalidade, alma, reminiscência. Já definir “perspectiva” é mais complexo. De acordo com pesquisador estadunidense Stuart A. Umpleby, a perspectiva depende da biografia e repertório (sinônimos de alma?) do sujeito observador. Seria mais um modo de ver do que um ponto de vista, este último no sentido físico e epistemológico. Para analisar com mais desprendimento o fenômeno da perspectiva, talvez seja coerente promover o fictício Senhor Palomar (4) ao papel de crash test dummy de algumas experiências de pensamento. O personagem de Calvino é um observador atento, mas por mais que direcione suas formulações sobre o mundo ao seu redor, aspectos mundanos são interpostos impiedosamente sobre suas distinções. Em outras palavras, para cada medida de “energia de segunda ordem” despendida por ele, há sempre um momento em que realidades físicas e temporais se impõem sobre ele.

As circunstâncias pelas quais vive Senhor Palomar sugerem um embate entre sujeito e objeto, pois ambos estão em fases diferentes, em termos subjetivos. Por esse motivo, destituímos o personagem e cedemos seu lugar a um sujeito real: o xamã amazônico. Para alguns povos indígenas ameríndios, a subjetividade não é exclusividade do sujeito, podendo transbordar para o mundo dito inanimado. Discutido em vários círculos antropológicos, o animismo – idéia segundo a qual espíritos habitam não apenas humanos, mas também vegetais, minerais, etc. – expande as tradicionais noções de perspectiva. Ao centrifugar a perspectiva para um ponto de vista interno, o personagem de Calvino opera num plano fechado, como se estivesse monopolizando um ponto de vista. No “perspectivismo” ameríndio (5), cada unidade da natureza se vê como os humanos se enxergam, em outras palavras, haveria um ponto de vista único, que, devido à multiplicidade de objetos inanimados (porém munidos com pontos de vista) e corpos animados, provocaria a diferenciação de perspectivas. O animismo pode ser uma maneira de reverter a noção de perspectiva legada do pensamento cientifico tradicional que data do século 17.

Aparentemente, Palomar valoriza um sistema tropológico visual (6), frente ao qual dançam os objetos do teatro do mundo (pássaros, planetas, ondas, etc.). Segundo a gramática grega, há várias palavras que significam diversos modos de ver, como blepo, que é a visão do olho, capacitada pela conjunção de leis ópticas e biológicas; e eidon, que associa a visão de olhos biológicos com a visão mental, subjetiva. Mesmo que Palomar se valesse apenas de eidon, continuaria se frustrando com as interposições da realidade concreta. Já o xamã amazônico opera uma espécie de gestalt switch, transferindo o ponto de vista, teoricamente exclusivo de apenas um sentido, para o plano do corpo. Ao considerar uma subjetividade latente em todas as coisas, passível de ser compartilhada se corretamente anulada a diferenciação que acomete os agentes do mundo a todo o momento, o xamã torna-se um co-sujeito polisensorial. Ele é literalmente interativo, e não reativo aos estímulos, tornando-se o modelo de interator perfeito de obras de arte cibernética de segunda ordem.

A arte cibernética de segunda ordem

Definida a perspectiva ideal, ao menos parcialmente, introduz-se o tema da arte cibernética de segunda ordem. Em primeira instância, o relacionamento do observador com uma obra desta categoria é interativo e não reativo, já que ele constrói um conhecimento, ou participa de um processo, não necessariamente estável (7). Não é uma relação de “apertar botões”, ou de perceber sensores, comportamentos típicos do fetiche tecnológico corrente; é uma co-relação, que implica numa co-produção. Enfatiza uma relação pró-ativa, da qual emerge uma novidade. Os pontos de vista dos agentes não são mais instrumentalizados por um sentido (visão), mas por todo um aparato sensório-motor. O canal é uma via de mão dupla, através do qual trafegam informações, perturbações, colapsos, ou seja, sinais que se distinguem em meio a um fluxo entrópico de estímulos externos.

Segundo o pesquisador e artista Paul Brown, na arte cibernética de segunda ordem os processos cognitivos evocados por uma obra alteram as mesmas evocações originais que, por sua vez, modificam o próprio processo produtivo de evocações, subvertendo a noção de causa e efeito por meio de um sistema recursivo (8). Na cibernética de segunda ordem, a relação causal não é linear, podendo o efeito dar origem a uma causa, e assim sucessivamente, numa série de eventos recursivos aninhados. Ao formatar os processos cognitivos por meio de múltiplas evocações, obras de arte dessa categoria acabam por reformular a própria lógica da percepção artística, associada comumente a posturas contemplativas, do tipo eidon.

Estabelece-se, assim, uma conversação entre obra e interator. Inicialmente, suas características são de primeira ordem, causais, uma ação de processos sobre processos: a cognição conduz a uma ação que produz uma cognição. Pensamento e efeito interagem e se encadeiam segundo uma lógica proposicional, ainda que longe de um ponto de equilíbrio. Entretanto, a relação de um interator com a obra de arte cibernética de segunda ordem expande-se para uma relação de segundo grau, em que ocorre uma estabilização, ou ao menos uma conversão para um estado em que as perspectivas são sincronizadas, lembrando que “perspectiva” é uma habilidade não restrita aos humanos, segundo a idéia do animismo. A relação transmuda-se para uma interação, e segue em direção a um valor próprio, uma direção preservada, um autovalor comum às duas partes. O valor eigen atingido (segundo von Foerster) talvez seja o que mais se aproxima da noção da filosofia oriental de “não-ação”.

Em termos práticos, qual seria um bom exemplo de obra de arte cibernética de segunda ordem? Talvez o trabalho que mais se aproxima desse conceito seja “Performative Ecologies”, do artista irlandês Ruairi Glynn. Trata-se de uma comunidade de robôs que, basicamente, se orienta por meio de um software de reconhecimento de padrões faciais. As esculturas se engajam em formas de comunicação não verbais, usando como argumentos simbólicos imagens dos observadores e o tempo de permanência deles frente à suas câmeras. A ecologia do título refere-se ao sistema formado por robôs e humanos que, juntos, perfazem a co-emergência de comportamentos, com cada parte estimulando a outra de maneira provocativa, no sentido de manter e reconhecer um relacionamento não determinado por processos deterministas. Os robôs, em dado momento, executam um verdadeiro balé cibernético, como se estivessem retribuindo (e celebrando) a sua comunhão com humanos.

É bem provável que a arte cibernética de segunda ordem ainda não tenha sido totalmente materializada, devido tanto a necessidade de se alterar a perspectiva sobre a perspectiva dos sujeitos, como de se modificar o tempo de experiência e fruição de tal obra, que não ocorre indutivamente, a priori, e nem dedutivamente, a posteriori, mas a praesenti, no exato momento da experiência e da formação de conceitos, memórias e individuações. Tal obra não se vale de ilusões, tampouco de truques; não é um mistoscópio, um brinquedo óptico, uma máquina de sombras. É um artefato que age profundamente na consciência e na percepção dos observadores, levando-os a uma zona de fluxo interativo, a uma esfera onde a relação homem-máquina não é mais vista como uma aberração, mas como uma conversação de alto nível, em que há compartilhamento de subjetividades, sejam elas processadas por um cérebro eletrônico ou de carne.